Desmatamento leva raposas a iniciar perigoso
'namoro'
REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
05/04/2017 02h00
Duas espécies de raposas do Brasil, separadas há muitos milhares
de anos pela mata atlântica, estão cruzando entre si e produzindo filhotes
híbridos, talvez porque a derrubada da maior parte da floresta tenha eliminado
a principal barreira que existia entre elas.
As protagonistas desse estranho namoro são a raposinha-do-campo (Lycalopex
vetulus), típica do cerrado, e o graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus),
natural dos pampas gaúchos.
Raposinha-do-campo (Lycalopex vetulus), típica do cerrado
Graxaim-do-campo (Lycalopex gymnocercus),
natural dos pampas gaúchos
Segundo pesquisadores
da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), é no território
do Estado de São Paulo que as duas espécies estão se misturando, e a situação
inspira cuidados: dependendo de como o processo continuar, boa parte da riqueza
genética original dos bichos pode acabar se perdendo.
Um dos autores da
pesquisa, o doutorando maranhense Fabricio Silva Garcez, conta que a primeira
pista de que havia algo estranho acontecendo veio de um trabalho anterior (da
mestranda Marina Favarini, na PUC-RS), no qual dois bichos que tinham sido
classificados morfologicamente (ou seja, com base na aparência física) como L.
vetulus acabaram apresentando material genético de L.
gymnocercus.
PAPAI
E MAMÃE
Para ser mais exato,
os misteriosos animais tinham mtDNA (DNA mitocondrial) da espécie sulina.
Ocorre que o mtDNA, presente apenas nas mitocôndrias, as usinas de energia das
células, quase sempre é transmitido das mães para seus filhos ou filhas –em
geral, nenhum animal herda o mtDNA do pai.
O dado, portanto,
parecia indicar que ao menos uma fêmea de graxaim havia tido filhotes com um
macho de raposinha-do-campo.
Durante seu mestrado,
orientado por Eduardo Eizirik (da PUC-RS) e Ligia Tchaicka (da Universidade
Estadual do Maranhão), Garcez analisou amostras de DNA de dezenas de indivíduos
de ambas as espécies, colhidas numa área ampla, que vai do Maranhão ao Rio
Grande do Sul. (As análises genéticas foram feitas a partir do sangue colhido
de bichos capturados e de amostras da carcaça de raposas atropeladas Brasil
afora, coisa que infelizmente é comum).
Além do mtDNA, a
equipe estudou ainda trechos do DNA do núcleo das células, conhecidos como
microssatélites (que parecem uma "gagueira" de letras químicas de
DNA, com pequenos trechos que se repetem várias vezes).
Tais análises
confirmaram a suspeita inicial: seis bichos paulistas tinham toda a pinta de
ser híbridos, inclusive de segunda geração (ou seja, netos do cruzamento
original entre as duas espécies). Cinco deles tinham, de novo, mtDNA de
graxaim, enquanto o sexto indivíduo apresentou sinais de hibridização apenas no
DNA do núcleo das células.
Ou seja, por enquanto
parece que o cruzamento de machos de raposinha-do-campo com fêmeas de graxaim é
mesmo mais comum, embora não seja a única possibilidade.
"Isso é curioso
porque, em outras zonas híbridas de canídeos [o grupo dos cães, lobos e
raposas], normalmente o macho é o da espécie de maior porte, mas no nosso caso
o L. gymnocercus é maior", diz Garcez. Ainda é cedo para
dizer com exatidão o que tem levado essas fêmeas a se deslocar rumo a São Paulo
e por que o mesmo não estaria acontecendo com os machos da espécie sulina.
Agora no doutorado,
Garcez está ampliando as análises para tentar entender em detalhes o que está
acontecendo no contato entre as duas espécies, as quais formam a primeira zona
híbrida de canídeos confirmada na América do Sul (na América do Norte, há o
exemplo muito estudado da zona híbrida entre lobos e coiotes).
Os dados de DNA
também podem confirmar a hipótese de que a hibridização é culpa da ação humana
–se ela for um evento recente, cresce a possibilidade de um elo com a derrubada
da mata atlântica. Afinal, as duas espécies são típicas de ambientes abertos,
sem floresta densa. "Quando você remove essa barreira, com o aparecimento
de pastagens e plantações no lugar da mata, a tendência é que elas acabem
entrando em contato", diz Garcez.
O gênero Lycalopex,
ao qual ambas as raposas pertencem, diversificou-se há relativamente pouco
tempo em termos evolutivos (a partir de cerca de 1 milhão de anos atrás). Mesmo
assim, apesar de serem fisicamente parecidas e de conseguirem cruzar entre si,
as espécies possuem hábitos consideravelmente diferentes. A raposinha-do-campo
normalmente se alimenta de cupins e frutas do cerrado, enquanto o graxaim, como
bom gaúcho, inclui uma proporção maior de carne em sua dieta.
"Se todos se
tornarem híbridos, vai ser algo muito ruim porque, na prática, duas espécies
vão acabar desaparecendo por causa da intervenção humana", diz Garcez.
-
CASAMENTO INESPERADO
Entenda a mistura
entre as duas espécies de raposas
1 - As áreas de vegetação
aberta do Brasil abrigam duas espécies de raposas, a Lycalopex vetulus (raposinha-
do-cerrado) e a L. gymnocercus (graxaim-do-campo). A segunda
espécie costuma ser de maior porte
2 - As duas espécies
originalmente estavam separadas pelas áreas de floresta fechada da mata
atlântica...
.... mas é possível que o desmatamento tenha permitido que os
bichos, antes separados, passassem a se encontrar
3 - Pesquisadores estão achando, graças a testes de DNA, animais
híbridos das duas espécies. No Estado de São Paulo, nenhum animal estudado
mostrou ser "puro" -praticamente todos parecem ser filhos ou netos do
cruzamento dos dois animais
E DAÍ?
Se essa tendência continuar, há o risco de que boa parte da riqueza genética dessas espécies se perca, formando-se uma única grande população híbrida amalgamada |
Nenhum comentário:
Postar um comentário