Rio 2016 escancara crise do modelo dos Jogos Olímpicos 'como nunca
antes', diz pesquisador dos EUA
RIO 2016 será
marcada como a Olimpíada em que "o verniz das relações públicas se desfez
de forma inédita na história dos Jogos, como nunca antes", na opinião do
pesquisador Jules Boykoff, doutor em ciência política e professor da American
University, de Washington.
Em entrevista à BBC Brasil, ele disse que problemas surgidos na
preparação dos locais sede - "privilégios para os mais ricos, remoções de
muitas pessoas do seu local de moradia e militarização do espaço público"
- não são novos, mas que no Rio "você vê essas tendências aumentadas, e
com clareza muito maior".
Dívida dos Jogos de Montreal
demoraram 30 anos para serem pagas Foto: Getty Images
Ele
diz, como exemplo, que no Rio "jamais houve a mínima ilusão" de que a
Vila dos Atletas seria revertida, após os Jogos, em alguma projeto de valor
social, como foi o caso em Olimpíadas anteriores.
"A Olimpíada como megaevento
está lentamente entrando em crise, e você vê elementos desta crise se
apresentando com força maior no Rio."
Em seu livro recém-lançado, Power Games: A Political History of the Olympics ("Jogos
de Poder: Uma História Política das Olimpíadas") ainda sem título oficial
em português, Boykoff descreve o que vê como uma crise estrutural no modelo dos
Jogos, da escolha da cidade-sede ao descompasso orçamentário e às promessas de
legado não cumpridas.
· Para o especialista, o COI (Comitê Olímpico Internacional), é parte do
problema, por encorajar projeções de custo irreais no momento da candidatura
das cidades-sede e por guardar seu próprio orçamento a sete chaves. Ele
acredita que o Rio avançou muito pouco após dez anos sediando megaeventos.
Em entrevista à BBC Brasil,
Boykoff, que jogou no time olímpico de futebol dos Estados Unidos nos anos
1990, diz que há cada vez menos cidades interessadas em sediar as Olimpíadas e
que a tendência é que o COI encontre cada vez mais dificuldades em achar
candidatos
Estudioso diz que 'verniz das
relações públicas' caiu no Rio
Foto: PA / BBCBrasil.com
·
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - A Rio
2016 enfrentou problemas como promessas não cumpridas na área ambiental,
remoções de comunidades para dar lugar a obras, além de projetos que ficaram
mais caros e atrasos em áreas importantes, como a expansão do metrô linha 4.
São problemas que vêm se tornando rotina paras as cidades-sede ou tratam-se de
questões específicas do Rio?
Jules Boykoff - A Olimpíada do
Rio segue um padrão de problemas que estamos vendo em diversas cidades-sede nos
últimos anos, e estes incluem os privilégios para os mais ricos, remoções de
muitas pessoas do seu local de moradia e militarização do espaço público. Eu
diria que no Rio você vê essas tendências aumentadas, e com clareza muito
maior. No Rio o verniz das relações públicas dos Jogos se desfez de forma
inédita na história das Olimpíadas, como nunca antes. A Vila dos Atletas é um bom exemplo disto. Em Olimpíadas anteriores, os
organizadores escolheram esta área para se obter um valor social positivo após
os Jogos, com a transformação em moradias sociais. No Rio, jamais houve a
mínima ilusão de que isto aconteceria. Desde o início o plano foi converter os
apartamentos em condomínios de luxo. O contexto em torno das Olimpíadas mudou
de forma muito drástica. Elas estão agora numa crise que vai além dos Jogos do
Rio 2016. A Olimpíada como megaevento está lentamente entrando em crise, e você
vê elementos desta crise se apresentando com força maior no Rio.
BBC Brasil - Quais são os principais aspectos desta crise
estrutural que o senhor identifica para a forma como as Olimpíadas vêm sendo
projetadas e geridas?Boykoff - Um
grande indicativo é que cada vez menos cidades estão interessadas em sediar as
Olimpíadas. Olhe para o processo de seleção para os Jogos de Inverno de 2022.
Você vê que no final sobraram apenas dois locais: Almaty, no Cazaquistão, e
Pequim, na China. Nenhuma das duas conhecidas como bastiões da democracia. E
Pequim ganhou. Se você olhar para trás, verá que todas as vezes que os cidadãos
tiveram a oportunidade de dar sua opinião, num processo democrático, eles disseram
não a sediar os Jogos. Isso aconteceu em Cracóvia, na Polônia, em Estocolmo, na
Suécia, e em dois cantões da Suíça. Em Oslo, deputados
noruegueses também rejeitaram sediar a Olimpíada. O que se percebe é que, cada
vez mais, se o processo de decisão é aberto à população ou a Casas
parlamentares, numa consulta democrática, a resposta é não a sediar a
Olimpíada.
BBC Brasil - A Olimpíada é
vista por especialistas como o evento que mais extrapola o orçamento em
comparação com qualquer outro grande evento. Sempre foi assim, ou é uma
tendência recente?
Boykoff - Ao
menos desde 1960 todas as Olimpíadas ultrapassaram o orçamento. Em parte, isso
se deve ao fato de que as Olimpíadas se tornaram tão grandes. É o que alguns
especialistas que estudam os Jogos chamam de "gigantismo". E por
causa disso os Jogos continuam crescendo mais e mais, acrescentando novos
esportes, e conforme se tornam um alvo em potencial para grupos terroristas, o
orçamento de segurança também aumenta. As cidades
são estruturalmente encorajadas a reduzirem o valor de tudo nos seus dossiês de
candidatura. Oferecer estimativas menores do que os Jogos vão custar é crucial
porque as cidades precisam de apoio da opinião pública durante o processo de
candidatura.
Vila dos Atletas
será transformada em condomínio de luxo
Fot Getty Images
BBC Brasil - Atualmente é praticamente impossível uma cidade-sede
conseguir manter o orçamento previsto no processo de candidatura. Como o COI
poderia ajudar a evitar este descompasso orçamentário?
Bookoff - Eu
acho que o COI realmente é parte do problema porque tem demonstrado uma grande
facilidade espontânea em ser enganado. Eles acreditam em qualquer coisa que
qualquer candidato diga. Trata-se de um pensamento mágico por parte do COI, já
que eles não fazem perguntas duras para as cidades candidatas. O COI precisa ser muito mais transparente sobre o processo de votação
das cidades-sede. Há a montagem de comitês e são produzidos relatórios técnicos
sobre cada cidade, mas no final das contas as pessoas que votam podem ignorar
toda essa documentação técnica e decidir porque têm uma relação com o
presidente do país ou porque gostam do prefeito da cidade-sede.
BBC Brasil - Houve avanços no combate à corrupção no processo de
seleção das cidades-sede? O COI diz que não pode divulgar informações sobre
orçamento e gastos devido a contratos com parceiros comerciais e
patrocinadores. Por que há tanta falta de transparência sobre as finanças do
Boykoff - É muito difícil saber por ser um processo
tão cinzento e cheio de segredos. Houve muita corrupção em torno das
candidaturas de Sydney, na Austrália, e de Nagano, no Japão. Eles destruíram
todos os documentos em Nagano, então nem sabemos o que aconteceu. A corrupção
saiu do controle na candidatura de Salt Lake City, nos EUA, para os Jogos de
Inverno de 2002, eles foram pegos, e o escândalo levou a algumas reformas no
COI. Hoje em dia, os
membros do COI não podem fazer visitas especiais às cidades-sede antes da
votação, que era justamente quando muito da corrupção ocorria. A corrupção
parece estar menos disseminada atualmente na relação do COI com os processos de
candidatura. Eu aplaudo o COI por recentemente ter começado a ser um muito mais
transparente com relação aos seus gastos. Eles revelaram alguns dos benefícios
do presidente da entidade, Thomas Bach, e de quanto são as diárias de alguns
dos diretores do comitê quando estão em viagem. Se
você é um membro executivo do COI e vem ao Rio para reuniões, além de ficar no
Hotel Copacabana Palace, você pode receber uma diária de US$ 900 para seus
gastos pessoais. Se você é um membro normal, a diária é de US$ 400. Compare
isso ao rendimento médio de um morador da Rocinha, de US$ 240 por mês. Só por estar dentro da lei não significa que é ético, e só por estar
sendo revelado não significa que não é chocante. O COI precisa ser mais
responsável com o legado e os impactos dos Jogos para as cidades-sede. Muitas
vezes, o COI diz que não pode divulgar informações sobre orçamento devido a
contratos com seus patrocinadores. Trata-se na verdade de um escudo atrás do
qual o comitê se esconde para justificar que por isso não pode compartilhar informações financeiras.
BBC Brasil - Quando é que os Jogos começaram a
perder seu apelo para as cidades? Boykoff - Eu
acho que 1976 foi o ano mais decisivo para a história política do COI, primeiro
por conta de Montreal, quando o prefeito disse que os Jogos custariam US$ 125
milhões, e disse que seria mais fácil um homem ter um bebê do que a Olimpíada
entrar em deficit orçamentário. Ela acabou custando US$ 1,5 bilhão e levou 30
anos para que a dívida deixada pelos Jogos fosse paga pelos contribuintes. No mesmo ano, no processo de candidatura dos Jogos de Inverno, os
cidadãos de Denver, nos EUA, se posicionaram, fizeram protestos e conseguiram
exigir um plebiscito no qual votaram contra sediar os Jogos, dizendo que isto
acabaria com o meio ambiente e traria dívidas, e o COI teve que mudar a sede
para Innsbruck, na Áustria.
BBC
Brasil - O senhor ressalta vários pontos negativos e problemas em sediar as
Olimpíadas, mas quais são os benefícios que uma cidade pode obter ao sediar os
Jogos?
Boykoff - Olhando
para as Olimpíadas recentes eu diria que um dos maiores ganhos para uma cidade
que sedia os Jogos pode ser o avanço na rede de transporte público. Veja o caso
de Atenas, em 2004. A maior parte das pessoas viu os Jogos de Atenas como um
desastre total. É fato que eles mal terminaram as obras antes dos Jogos, mas
melhoraram o sistema de metrô, e isso é algo que todos os cidadãos de Atenas
podem usufruir todos os dias. Se a linha 4
for concluída, no caso do Rio este seria um grande ganho para o transporte
público. Já em quesitos ambientais e de sustentabilidade o COI precisa
melhorar. Se as promessas ambientais tivessem sido cumpridas no Rio este seria
um grande ganho para os cariocas.
Especialistas criticam gigantismo dos
Jogos
Foto: Getty Images BBC Brasil - O Rio acaba de sair de um ciclo de dez anos como sede
de grandes eventos. Houve os Jogos Panamericanos, Jornada Mundial da Juventude,
Rio+20, Jogos Mundiais Militares, Copa das Confederações, Copa do Mundo e agora
Olimpíada. Se houvesse tantos avanços com a realização desses megaeventos, a
cidade não deveria ser, a esta altura, muito melhor e com problemas muito mais
resolvidos, em setores como transporte público e saneamento básico? Boykoff - Sim, poderíamos
esperar que após dez anos de megaventos o Rio estaria num outro patamar de
transporte público, com melhor saneamento básico, tratamento de esgoto e
questões de sustentabilidade resolvidas. Haveria maior avanço se muitas das
promessas feitas para cada um desses eventos tivessem sido cumprida
Mas, dez
anos depois, aqui estamos nos perguntando como foi possível gastar todos esses
bilhões de dólares e como muito desse dinheiro público acabou servindo para
proporcionar vantagens aos segmentos mais ricos da população carioca, as elites
econômica e políticas. É doloroso refletir sobre todo esse dinheiro usado em
megaeventos no Rio e o pouco que se conseguiu de beneficio para os cariocas. BBC Brasil - O
senhor diria que os países que optam por pagar pelas arenas e instalações
olímpicas, em vez de criar parcerias com a iniciativa privada, e depois
usufruem 100% dos locais e podem dar finalidades coletivas a eles, acertam mais
do que o modelo escolhido no Rio, onde em troca dos recursos para construção
das arenas, grandes empreiteiras receberam o direito de explorar as regiões com
empreendimentos de luxo, como na Vila dos Atletas, Campo de Golfe e parte do
Parque Olímpico?
Boykoff - Eu
acho que este seria um passo potencialmente muito positivo a ser tomado. Em
geral a cidade-sede paga por essas construções, mas há um risco envolvido. O
ideal seria o Estado pagar e depois poder usufruir 100% das instalações no
plano de legado. Caso o Rio tivesse
usado lições de Olimpíadas anteriores nos aspectos onde houve avanços, poderia
ter chegado a um plano muito bom. Usando, por exemplo, o sistema de transporte
público de Atenas, e o estádio de natação de Londres. De forma geral, nenhuma
Olimpíada recente serviu muito para o bem coletivo, e essa é uma das maiores
enganações.
BBC
Brasil - Seis meses após os Jogos, corre-se o risco de que o Estado e a
Prefeitura do Rio se colocaram em dívidas muito maiores do que o imaginado por
conta da Olimpíada?
Boykoff - Fazer
predições é algo muito difícil, sobretudo num ambiente tão volátil e com tantas
mudanças como a política e a economia do Estado e da cidade do Rio, onde há
tantas turbulências constantes. Mas eu diria que o futuro ainda está em aberto
no Rio, e há muito espaço para mudanças. Há diversas cartas sobre a mesa, e
oportunidade de agitar e transformar. Resta saber se esta oportunidade será
tomada.
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