O impacto
destruidor do aquecimento global no Alasca
Vilarejos
inteiros precisarão ser realojados por conta do derretimento do permafrost
Sara Goudarzi 26.mar.2018 às 17h28
Vladimir Romanovsky atravessa a densa floresta de coníferas com
facilidade. Não para ou diminui o passo nem sequer para se equilibrar diante do
musgo macio que cobre o permafrost —superfície que permanece congelada nas
regiões polares. https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2018/03/o-impacto-destruidor-do-aquecimento-global-no-alasca.shtml
À medida que o vilarejo de Kwigillingok
descongela, a infraestrutura está desmoronando –
É um dia quente de julho, e o cientista está procurando uma
caixa que ele e sua equipe deixaram no solo. Ela está escondida cerca de dez
quilômetros ao norte do Instituto de Geofísica da Universidade do Alasca, em
Fairbanks, onde Romanovsky é professor de geofísica e responsável pelo
Laboratório de Permafrost.
O recipiente, coberto por galhos de árvores, contém um coletor
de dados conectado a um termômetro, instalado abaixo do solo para medir a
temperatura do permafrost em diferentes profundidades.
O permafrost é qualquer material terrestre que permaneça a 0°C
ou abaixo dessa temperatura por pelo menos dois
anos consecutivos.
Vladimir Romanovsky coleta registros de
temperatura abaixo do solo da floresta -
Romanovsky conecta então seu laptop ao coletor de dados para
transferir os registros de temperatura desta localidade, chamada Goldstream 3,
que mais tarde serão adicionados a um banco de dados online, acessível tanto
para cientistas quanto para qualquer pessoa interessada.
"O permafrost é definido com base na temperatura. Esse é o
parâmetro que caracteriza a sua estabilidade", explica o professor.
Quando a temperatura do permafrost é inferior a 0°C, por
exemplo, -6°C, ele é considerado estável, o que significa que vai demorar muito
para mudar ou descongelar. Já se está perto de 0°C, é classificado como
vulnerável.
Todo verão, a porção de solo que cobre o permafrost, chamada de
camada ativa, derrete —e congela de novo no inverno seguinte.
Em Goldstream 3, naquele dia de julho (verão no hemisfério
norte), o derretimento chegava a 50 cm de profundidade.
Solo escuro indica a presença de carbono
orgânico acumulado -
À medida que a Terra aquece e as temperaturas aumentam no verão,
o degelo está se expandindo e ficando mais profundo, fazendo com que o
permafrost fique menos estável.
Se o derretimento
continuar, haverá consequências profundas para o Alasca e para o mundo. Cerca
de 90% do estado é coberto por permafrost, o que significa que vilarejos
inteiros precisarão ser realojados, conforme as fundações dos edifícios e as
estradas desmoronarem.
E se o permafrost
liberar o carbono acumulado e retido há milênios dentro dele, poderá acelerar o
aquecimento do planeta —muito além da nossa capacidade de controlá-lo.
ESTADO DE VULNERABILIDADE
À medida que o
permafrost derrete, casas, estradas, aeroportos e outras infraestruturas
construídas sobre o solo congelado podem rachar e até mesmo ruir.
"Estamos vendo
mais serviços de manutenção em estradas que passam sobre o permafrost",
diz Jeff Currey, engenheiro de materiais do Departamento de Transportes
Públicos do Alasca.
"Um dos nossos
superintendentes de manutenção contou recentemente que sua equipe está tendo
que remendar certos trechos das rodovias com mais frequência do que há 10 ou 20
anos."
Da mesma forma, as
infraestruturas construídas no subsolo —para atender os serviços de utilidade
pública, por exemplo— estão sendo afetadas, conforme as temperaturas aumentam.
"Em Point Lay,
na costa noroeste do Alasca, por exemplo, eles estão tendo todos os tipos de
problema com as redes de água e esgoto no solo de permafrost", afirma
William Schnabel, diretor do Centro de Pesquisa de Água e Meio Ambiente da
Universidade do Alasca.
Leituras feitas a partir de sensores no solo
indicam mudanças significativas em andamento -
A preocupação é ainda maior para aqueles que vivem em áreas
rurais, que não dispõem de fundos suficientes para combater os efeitos do
derretimento do permafrost.
Para esses moradores, não são apenas os edifícios que estão
ruindo, o que é comum agora, mas também o abastecimento de água.
Muitas vezes, quando o permafrost derrete ao lado de um lago
usado por um vilarejo como fonte de água, há uma fenda e ocorre um dreno
lateral.
"Geralmente, é necessária uma infraestrutura bem cara para
tirar água de um lago, levar para uma vila e armazená-la. E todos os
componentes desta infraestrutura são vulneráveis ao degelo do permafrost",
diz Romanovsky.
Permafrost é qualquer solo que permaneça
congelado a 0°C ou menos por pelo menos dois anos consecutivos –
Se um vilarejo depende de um lago afetado para conseguir água,
os membros da comunidade têm de levar sua infraestrutura e, às vezes, a vila
inteira para outro lago, o que pode custar muito dinheiro.
De acordo com uma análise realizada pelo órgão de pesquisas
geológicas americano US Geological Survey, aldeias como Kivalina, no noroeste
do Alasca, terão que se mudar nos próximos dez anos.
"Mas estimativas sugerem que o custo desta mudança seria de
cerca de US$ 200 milhões por cada vila de 300 pessoas", explica
Romanovsky.
Chegar a uma quantia como essa só seria possível com o
financiamento do governo federal —mas não há garantias de que uma nova
localização também não seria afetada.
"Acredito que agora existam 70 vilas que realmente precisam
ser realojadas em decorrência do derretimento do permafrost", avalia.
"Mas transferir os vilarejos para outra área no permafrost
é muito difícil de garantir por uns 30 anos. E o governo federal não quer pagar
por algo que precisará pagar novamente."
Vladimir Romanovsky no Laboratório de
Permafrost, da Universidade do Alasca, em Fairbanks -
Além disso, é possível que a construção de assentamentos no
permafrost também possa agravar o problema no Alasca.
"Quando você
pensa em água e esgoto, você precisa mantê-los sem congelar. E, no caso do
permafrost, você tem que mantê-lo congelado", diz Schnabel.
"Ou seja, vai
correr água relativamente quente pelo permafrost e haverá alguma dissipação de
calor lá."
Do mesmo jeito,
quando uma estrada é construída, parte da vegetação que cobre o permafrost é
removida para que a rodovia seja pavimentada com asfalto, o que aumenta a
quantidade de radiação solar absorvida.
Por isso, embora os
serviços de manutenção tenham aumentado, nem todos os problemas relacionados à
infraestrutura podem ser atribuídos à mudança climática.
FREEZER CHEIO DE CARBONO
O Alasca, está, sem
dúvida na linha de frente das mudanças climáticas, mas as questões relacionadas
ao permafrost vão além da "última fronteira selvagem", como é
conhecido. O derretimento do material afetará outros 48 estados americanos,
localizados abaixo dele, assim como todo o planeta.
De acordo com
Romanovsky, metade do estado e 90% do permafrost do interior do Alasca vão
descongelar se houver um aumento médio global de 2°C na
temperatura.
Isso é
especialmente preocupante porque uma enorme quantidade de carbono orgânico é
sequestrada no permafrost e na camada ativa que se sobrepõe a ele.
Uma vez que não há
calor suficiente no solo congelado para ajudar os micro-organismos a decompor a
vegetação morta, a matéria orgânica foi se acumulando durante milhares de anos
no permafrost.
Algumas análises
estimam que a quantidade de carbono no permafrost equivale a mais de duas vezes
a de dióxido de carbono na atmosfera.
"Se
mantivermos o curso atual, é bem provável que até 2100 uma parte significativa
do permafrost, nos cinco metros superiores, descongele. E, com ele, toda a
matéria orgânica que está atualmente retida ali", diz Kevin Schaefer,
pesquisador do National Snow and Ice Data Center da Universidade do Colorado.
No Parque Nacional Denali, o aumento da
temperatura começou a afetar a vida selvagem -
"Isso significaria uma liberação de dióxido de carbono e
metano, que aumentaria o aquecimento devido à queima de combustíveis fósseis."
Em artigo publicado
em 2012 na revista científica Nature, Schaefer e seus colegas sugerem que os
eventos de aquecimento súbito ocorridos anteriormente foram essencialmente
desencadeados pela liberação de dióxido de carbono e metano do permafrost há
cerca de 50 milhões de anos na Antártida.
E as projeções não
parecem otimistas: "Teoricamente, se esse carbono for liberado para a
atmosfera, a quantidade de CO2 será três vezes maior do que a que está lá
[na atmosfera] agora", diz Romanovsky.
Desta forma, há uma
genuína retroalimentação, uma vez que aquecimento aumenta em decorrência da
queima de combustíveis fósseis.
Mas, apesar do fato
de o aquecimento estar acelerando, os efeitos da retroalimentação serão
graduais, levando tempo para serem sentidos.
"É um feedback
muito lento", diz Schaefer.
"Imagine
tentar conduzir um navio a vapor com o remo de uma canoa, esse é o tipo de
feedback que estamos falando", compara.
Infelizmente, uma
vez que o permafrost começa a derreter, é difícil congelá-lo novamente —pelo
menos enquanto estivermos vivos. Além disso, a partir do momento que material
sai do solo e vai para a atmosfera, não existe uma maneira fácil de enviar esse
carbono de volta ao chão.
"A única
maneira de fazer isso seria baixar a temperatura global e congelar de novo o
permafrost, o que significaria que você estaria removendo o dióxido de carbono
da atmosfera", diz Schaefer.
Segundo Romanovsky,
os modelos climáticos mostram que os atuais compromissos intergovernamentais
para reduzir o aquecimento global —conforme estabelecido no Acordo de Paris— podem não ser suficientes.
Em artigo publicado
em 2016 na revista Nature Climate Change, a pesquisadora Sarah Chadburn e seus
colegas estimam que, mesmo que o clima fosse estabilizado, conforme acordado
pelos 196 países em 2015, "a área de permafrost seria eventualmente
reduzida em mais de 40%".
No entanto, após o
anúncio do presidente Donald Trump de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, em junho do ano passado, é de se esperar uma
perda ainda maior de permafrost no horizonte.
O JOGO DE CULPA
O Alasca é um
estado conservador politicamente, então quem está de fora pode supor que seus
moradores rejeitam a ideia do aquecimento global. Mas a realidade é mais complexa.
Uma pesquisa
realizada no início deste ano pelo Alaska Dispatch News, com um total de 750
participantes, mostrou que mais de 70% da população local está preocupada com
os efeitos da mudança climática.
"No Alasca, a
quem você perguntar, vai responder 'sim, há aquecimento'", afirma
Romanovsky.
"Quanto mais
para o norte você for, especialmente no noroeste, mais forte é esse sentimento.
Porque está acontecendo, você consegue ver. Claro, a questão sobre de quem é a
responsabilidade depende das crenças políticas."
No Parque Nacional
Denali, a guarda florestal Anna Moore testemunhou como o aquecimento pode
afetar em pouco tempo a vida selvagem.
Ela reparou que a
lebre do ártico, que muda a cor da pele de acordo com as estações do ano para
se camuflar, parece não estar acompanhando mais as mudanças, como resultado do
aumento da temperatura, o que a deixa mais exposta a predadores.
A lebre do ártico está tendo dificuldade para
se camuflar, conforme a neve derrete -
"No inverno, eles ficam brancos", diz Moore.
"À medida que está ficando mais quente, a neve está
derretendo mais rápido, mas seus corpos são aclimatados a certas mudanças de
temperatura e, portanto, mesmo que a neve já esteja derretendo, eles continuam
brancos —e correndo perigo por causa dos predadores."
Moore acrescenta que, apesar de acreditar nas mudanças
climáticas e estar observando seus efeitos na fauna e flora do parque, ela
considera isso um resultado tanto das atividades humanas quanto de um ciclo
natural.
Ashley Tench, sua colega, compartilha o mesmo sentimento:
"Eu concordo com ela [em] como isso é em parte feito pelo homem, mas
é também natural".
Por isso, Tench não acredita que a saída dos Estados Unidos do
Acordo de Paris faça diferença no clima.
Mas nem todo mundo no Alasca tem essa opinião. Para Bill
Beaudoin, mergulhador e educador aposentado, que agora é proprietário de uma
pensão em Fairbanks, é óbvio que os humanos são culpados e que devemos
trabalhar para reverter os efeitos de nossas ações.
"Acredito que o Acordo de Paris era necessário ", diz
ele.
"Na verdade, eu não achava [que era] suficiente. Há um
país, a Nicarágua, que não assinou o acordo porque achou que não era forte o suficiente.
Eu ficaria provavelmente ao lado da Nicarágua nesta questão", acrescenta.
O Acordo de Paris era necessário. Na verdade,
eu não achava (que era) suficiente, afirma Bill Beaudoin, morador do Alasca
-
Mas não importa quem seja o culpado pelo aquecimento e o
consequente derretimento do permafrost. A população do Alasca está, em sua
maioria, preocupada com seu futuro.
"As pessoas estão preocupadas,
porque, claro, não existe seguro para derretimento do permafrost", diz
Romanovsky.
"Os seguros não estão cobrindo
os danos causados pelo permafrost, assim como por terremotos na
Califórnia."
EM BUSCA DO CARBONO
De volta a Goldstream 3, Romanovsky
observou que a 50 cm de profundidade, a temperatura do solo era de -0,04°C. Em
um metro, chegava a -0,23 °C.
Na última vez que tinha verificado os
dados, em março, a temperatura a um metro do solo era de -1,1°C.
Ele pega sua pá e faz um buraco no
chão para observar o solo e checar se há presença de carbono. A superfície mais
escura indica carbono orgânico acumulado.
Quanto mais ele cava, mais frio fica
o solo. Ele escava tanto até que sua pá toca o permafrost —e aparentemente ele
não pode ir além.
Pesquisadores do Instituto Geofísico da
Universidade do Alasca estão monitorando mudanças de temperatura no longo prazo
-
Romanovsky força um pouco mais e consegue desenterrar um pedaço
do permafrost —do tamanho de uma pequena moeda. Segundos após segurar o solo
congelado entre os dedos, ele derrete como se fosse um cubo de gelo.
Ele devolve a terra removida de volta ao buraco, desconecta seu
laptop do coletor de dados, fecha a caixa, cobre novamente com galhos de árvore
e se prepara para voltar.
Em uma semana, ele vai se deslocar para o norte do estado para
registrar a temperatura em outras áreas, acrescentando mais informações a uma
das bases de dados de permafrost mais abrangentes do mundo.
Enquanto isso, pouco a pouco, o Alasca vai derretendo —e o que
vem pela frente não se sabe. O certo é que o grande degelo mudará para sempre a
paisagem como é hoje —e provavelmente o planeta e seus habitantes.